A atenção primária à saúde (APS) é o
primeiro nível de acesso a um sistema de saúde, caracterizando-se,
principalmente, pela longitudinalidade, integralidade da atenção e a
coordenação do cuidado, podendo contar com características complementares como
a orientação familiar e comunitária e a competência cultural.
Países com APS forte, ordenadora e
coordenadora da atenção, apresentam melhores indicadores de saúde com menores
investimentos em relação a países com APS fraca. No Brasil, estudos mostraram
efeitos importantes da APS, especialmente da Estratégia Saúde da Família (ESF),
na melhoria da saúde da
população. Entretanto, a
heterogeneidade na qualidade da atenção ainda é uma marca da ESF, assim como os
desafios de se ampliar sua capacidade de resposta frente a novos e velhos
agravos que caracterizam a saúde no Brasil, especialmente as doenças crônicas.
No município do Rio de Janeiro a
cobertura da ESF em 2009 estava em torno de 7%. A partir desse ano, forte
ênfase foi dada para a APS. Iniciou-se uma reforma da APS orientada pela
qualidade, representada pela criação das novas Clínicas da Família e pelas
Unidades tipo A (ambas 100% ESF), diferente das unidades B (Unidades com
algumas ESF) e C (Unidades Tradicionais, sem ESF). Ao final de 2012, a
cobertura populacional da ESF era 40%. Assim, neste estudo, procurou-se
identificar e descrever aspectos relacionados à implantação, estrutura,
processo e resultados das Clínicas da Família na cidade do Rio de Janeiro,
comparando o grau de orientação à APS entre Unidades A, B e C.
Foi realizado um estudo de caso sobre
a implantação das Clínicas da Família, complementado por um estudo transversal
acerca do grau de orientação à APS dos diferentes modelos de atenção (A, B ou
C) por meio da aplicação do PCATool-Brasil, versão Profissionais de Saúde.
Diversas estratégias metodológicas foram utilizadas, como revisão da
literatura, obtenção e análise de indicadores de saúde, visitas a Unidades de
APS, entrevistas a informantes-chave, análise de dados dos prontuários
eletrônicos - diagnóstico de demanda - e estudo transversal com médicos
atuantes nas unidades de APS do município do Rio de Janeiro. O projeto de
pesquisa foi submetido aos Comitês de Ética em Pesquisa da SMSDC-RJ e da
UFRGS, sendo aprovado em ambos.
Os resultados obtidos apontam que o
município do Rio de Janeiro, assim como grande parte do país, apresenta uma
tripla carga de doenças: afecções agudas (ex: dengue) e condições
materno-infantis (mortalidade infantil e materna, sífilis congênita) ainda não
resolvidas, a epidemia das doenças crônicas (doenças cardiovasculares,
neoplasias, doenças mentais, HIV/AIDS) e das causas externas (violência e
acidentes, nem mencionadas anteriormente). Todos esses grupos de
morbimortalidade se apresentam, sem exceção, com um viés de iniquidade, sendo
mais presentes, quanto mais vulnerável socioeconomicamente é a população.
Aliado à vulnerabilidade social, o envelhecimento populacional agrega mais
desafios aos
serviços de saúde cariocas.
Frente a esses desafios, o
diferencial da reforma da APS foi a aposta na qualidade, por meio da criação e
ampliação das Clínicas da Família. Estas são grandes Unidades de Saúde, que
concentram 5 ou mais equipes de Saúde da Família, com estrutura física
diferenciada, onde a ambiência, o conforto, a beleza e a
sustentabilidade são requisitos
importantes, aliados à incorporação de tecnologia apropriada à pratica da APS,
com oferta de coleta de exames laboratoriais, raio X, ecografia e outros.
Não há dúvida de que foi realizada
uma revolução na qualidade da APS do Rio de Janeiro em apenas 4 anos. Os
resultados da análise multivariável do PCATool-Brasil mostram inequivocamente
que as unidades do modelo A apresentam superior, independente e
significativamente maior orientação para APS que as unidades do modelo B e C.
Entretanto, a proposta ainda não está
consolidada. A cobertura de ESF na cidade está próxima de 40%, devendo avançar
mais, e, alguns atributos, em especial o acesso, a longitudinalidade e a
coordenação, ainda devem ser muito fortalecidos. O grande risco para a
consolidação do modelo proposto é a falta de recursos humanos de qualidade e
bem preparados para trabalhar em APS, em especial de médicos de família e
comunidade. Neste sentido, as Clínicas da Família que contam com residência
médica parecem ter alcançado a qualidade almejada e esta parece ser a melhor
aposta para formar e fixar bons profissionais. Os dados analisados mostram que
houve progresso importante na ESF, com oferta e utilização de consultas
espontâneas e programadas adequadas. A ‘Carteira de Serviços’ mostrou o norte a
ser seguido para alcançar maior integralidade, mas todas as equipes devem
seguir as equipes pioneiras que já estão próximas de alcançar seu objetivo:
ofertar e possibilitar à população a utilização de todas as ações desta
‘Carteira’.
Em resumo, recomenda-se radicalizar o
processo de reforma em direção às Clínicas da Família, intensificando o aumento
da cobertura da ESF. Esta radicalização deve se dar, preferencialmente, por
meio da criação de novas Clínicas da Família, extinção das unidades do modelo
C, e suspensão da criação de unidades do modelo B. Além disso, é essencial que
se mantenham e intensifiquem estratégias de formação de médicos de família e
comunidade na rede de APS do Rio de Janeiro, além de criar mecanismos de
coordenação assistencial, a fim de reforçar o papel coordenador da APS.
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